domingo, 8 de julho de 2012


Gêmeos e gemidos


                        Univitelinos. Assim, Diego e Diogo brotaram da mesma sementinha, uma mesma garça os trouxe... mas, nem todas a fábulas infantis para quase-adolescentes-curiosos seriam suficientes para descrever a situação pois, mais que óvulo, placenta e útero, pareceram dividir uma só alma. Ainda na gravidez descobriram a razão mística que os levaram a serem protagonistas de um conto qualquer: tudo o que acontecia com um, o outro sentia.
                        Certa vez, ainda no calor da barriga da mãe, no afã de ganhar espaço, Diogo enfiou o dedo no olho de Diego, sentindo em seu próprio corpo, a dor infligida ao irmão. Quando nasceram, os pais que nada sabiam desta condição, viram com espanto o médico dar os inevitáveis tapinhas nas costas do primeiro bebê e perceberem que o outro automaticamente desmanchar em gritos e soluços como que se nele próprio fosse a agressão necessária à vida.
                        Durante a infância, era comum à mãe, que assistia televisão até mais tarde, surpreender-se com Diego levantando de seu quarto para, tomar rumo ao quarto do irmão e escutá-lo, embora menino, extremamente nervoso, falando em tons cinzas de raiva:
                        - Eu já falei pra você dormir de travesseiro!!! Meu pescoço não aguenta mais, Diogo!!! - e a trote, voltar para retomar o seu sono.
                        Decidiram não contar ao restante da família desta piada ou milagre de Deus, temendo a incompreensão e o julgamento maledicente. E acabaram por se acostumarem, irmãos e pais, com aquela situação, embora algumas vezes amaldiçoavam-na com toda a força possível. Explico: Diego não gostava de cebola, Diogo, amava; Diogo adorava banho quente, Diego, odiava; Diogo não ficava sem sua aula de balé, Diego lutava boxe!
                        Quando decidiram colocar brincos, procuraram um local onde tivesse dois profissionais do ramo para que pudesse furar as orelhas os dois, simultaneamente, no mesmo ato, no mesmo segundo... em vão! A dor foi em dobro! Centraram-se em gostos comuns para amenizar a situação. Optaram por estarem juntos quanto mais possível fosse. Vigiavam-se. Embora algumas vezes, era inevitável a ira dos céus despencar sobre os dois:
                        - Diogo, quero ir ao banheiro... é urgente!
                        - EU SEI, PORRA! Tinha que no final do filme!!!
                        Isto os afastou. E, embora unidos por condição divina de conhecer a fundo um ao outro, odiaram-se. Na adolescência quase não se falavam. E a mãe desesperada, que não podia compreender a profundidade da questão, chorava pela inimizade dos dois irmãos.
                        Certa noite de sábado, noite esta de difícil esquecimento para Diego, estava este em um bar com amigos quando subitamente soltou, a plenos pulmões, um:
                        - Ui! - enquanto dava um solavanco na cadeira.
                        - Que isso Diogo, tá passando mal?
                        - Não, é que eu senti uma dor aqui.... Ui!
                        - Onde? Onde? Quer ir ao hospital?
                        - Ui! Não, não... acho que vou embora! Ui!
                        Três semanas se passaram desde a primeira sensação. Nas noites dos finais de semana, os pais escutavam Diego, que já não saia mais, entres prantos e solavancos, gemer, sem nada entenderem. Mas esta situação não podia perdurar! E durante o almoço do dia seguinte, surpreendendo à todos pelo ímpeto e o ódio, Diego levantou-se da mesa e gritou para o irmão com o dedo em riste:
                        - Assuma, seu cretino! Conte para o papai e a mamãe! Assuma, infeliz!
                        Vendo que seria impossível sair daquele arcabouço, Diogo disse em tom baixo:
                        - Descobri que sou gay...

                        Este conto bem que poderia terminar aqui. A piada já fora lançada. E sem preconceito e julgamento, por favor. Mas, não! Não seria digno um final tão pobre! Os melhores filmes e novelas possuem aquela cena épica, grandiosa, memorável! Retomemos o mote:
                        - Descobri que sou gay...
                        Neste instante, atordoado pela visão da arma de fogo que Diego acabara de sacar e pelo prenúncio do que viria, a mãe quis gritar, embora o tempo não fora suficiente para tal. Diego, tomado pela ira e pela dor no púbis, descarregou o revolver contra o irmão.  Não houve dó, piedade e muito menos raciocínio de sua parte, pois, enquanto atirava, sentia queimar em seu peito explosões quentes e mortais, fazendo-o também cair ao solo. Muito embora saibam os pais com propriedade a razão, os médicos nunca descobriram a causa mortis de Diego...

sábado, 23 de junho de 2012

Marcianos Invadem a Terra


Marcianos invadiram a terra. Juro, é verdade. A passos sórdidos e gosmentos, almejavam a dominação da terra... a escravização da raça humana... usurpar nossas mulheres e crianças... essas coisas que sempre querem. Adendo: deixaram de lado os usuais canhões e vieram de sunga e óculos escuros. “Reconhecimento de área”, segundo eles. As pessoas provavelmente não os reconheceram. Eu sim porque tomei uma geladinha com dois deles no Leblon. Pra fazer um “social”, se é que entendem. Aprendendo nossa língua, exigiram saber o significado de “caipirinha”, “bunda” e “congresso nacional” – o qual, apesar das tentativas, não conceberam a idéia desta última.

O capitão da expedição, de antenas, ventosas e cor levemente esverdeada, portava uma pequena pistola “desintegradora de moléculas”. O mais baixo, com uma caneta laser cor verde água e uma insígnia com inscrito que mais parecia braile com javanês, de tudo tomava nota. Começaram com o demodé bordão: “- Leve-me ao seu Líder”. No entanto já adiantei que no Congresso dificilmente encontrariam alguém, muito menos recebendo pessoas com petições de pedidos...

- Humano, caso não se rendam, tomaremos seu planeta à ferro e fogo! Nossas instruções leve ao seu líder! - parecia o Yoda falando...
- Se vocês forem melhorar o sistema hospitalar público, por mim tudo bem.
- Questões temos para serem respondidas. O que faz aquela fêmea sem seus típicos uniformes?
- É uma garota de Ipanema certamente  procurando um estrangeiro para pagar suas contas... se você tiver dóllar na carteira vai conseguir falar com ela.
- Mestre, posso eu interagir com ela?
- Cale-se Zeldon! Viemos nós não com esse objetivo!
- E toda fumaça essa que invade os olhos meus?
- São as descargas de nossos veículos de transporte... o preço da evolução industrial...
- E aquele humano sujo na via caído?
- Ahhhh, aquele é o Juarez! Bebe pra esquecer dos problemas...
- Mais fácil que pensava eu será.... raça atrasada vocês são...
 -Vocês vieram de tão longe pra descobrir isso??? Garçom, mais uma cerva!

O diálogo maçante fora abruptamente interrompido por um bando de jovens que surgirão de supetão. Um arrastão segui-se pelas mesas do bar. Roubaram tudo o que podiam, de todos que podiam. Nessa levada se foram a pistola desintegradora de moléculas e a caneta laser. Os marcianos, tentando se identificarem,  tomaram tapa na cabeça até deitarem no chão. A caneta laser eu vi pela televisão na mão de um rapaz sorridente na transmissão de um jogo de futebol. Projetava o feixe verde água no rosto do goleiro, queimando seu rosto e evitando que pegasse um pênalti. A arma a civil apreendeu com o chefe do narcotráfico daquele morro. O delegado disse no noticiário não ter conhecimento de como "armas iraquianas de última geração" entraram no Brasil...

Acompanhei-os cabisbaixos até onde a nave espacial estava escondida. Lá, uma criança estava lavando os seus vidros e puxando a água com aqueles rodinhos de mão. Pediu um trocado. Tentaram explicar que haviam sido roubados, mas, alçaram vôo recebendo xingamentos do menino. Desistiram de seus planos. Vão procurar vida inteligente em Júpiter. Avisem minha mãe que estou indo com eles... ela sempre quis uma vida melhor pra mim...

terça-feira, 15 de maio de 2012

A Convenção dos Palhaços


                                Marcou-se em data previamente estabelecida, a primeira convenção de palhaços destas terras tupiniquins. Queriam articular um sindicato ou coisa assim. Tratar dos direitos sociais e previdenciários que os palhaços não gozavam. Porque, de resto, gozar com os outros era só o que faziam. Trazia em suas mãos, o Palhaço Goiabada com Queijo, ou melhor, o sr. Celestino Silva, um projeto para levar à Câmara dos Deputados no intuit de categorizar a atividade palhaçal como “Agente Público de Saúde”, uma vez que os sorrisos que arrancavam, cientificamente comprovado foi,  melhoravam a saúde daqueles homens e mulheres e crianças na pláteia.
                                O sr. Celestino Silva, tendo pedido um adiantamento para a Mulher Barbada, comprou um terno de liquidação para a ocasião. Penteou o cabelo, não passou maquiagem, despediu-se de sua esposa-anã e saiu com esperanças de um futuro melhor. Contudo, ao chegar na tenda armada para o evento, sua primeira decepção… todos estavam vestidos como palhaços! Considerou toda a situação, uma piada sem graça…
                                Sentou nas cadeiras plásticas e vermelhas. Dispensou o menino do algodão doce que fazia promoção para queimar o estoque das guloseimas. Aguardou o início. Então, o Palhaço Maisena, o mais velho entre eles, dando fim à sua impaciência, tomou o microfone em mãos:
-          Bom dia, Senhores e Senhoras e Senhoritas e Platéia! O que é o que é que tem cabeça mas não pensa tem dente mas não morde e tem barba que nem bode? É o Alho! Deixo agora o microfone aberto para outras considerações...

Boquiaberto, o sr. Celestino Silva, solicitou o uso do microfone.

-          O Goiabada com Queijo será o próximo! Venha pra cá irmão! Que roupas engraçadas as suas!
Atônito, subiu as escadas devagar. Internamente pensava em um discurso que pudesse fazer com que os colegas de profissão focassem em questões sérias e profícuas para classe. Logo chegando, estendeu-lhe a mão o Palhaço Catchup, sendo que quando foi apertá-la, não percebendo o pequeno dispositivo escondido, tomou tremendo choque, fazendo com que todos ali rissem até rolar no chão.
Tentando perceber o que aconteceu, e ainda tonto, puxou uma cadeira para sentar e recuperar os sentidos, entretanto, nesse exato momento, o Palhaço Chucrute tirou-a despercebidamente, projetando seu corpo de costas ao solo e fazendo explodir todos os outros palhaços em gaitadas de riso.
Ciente de que estavam fazendo dele uma grande piada, levantou-se com expressão de que poria a tenda abaixo, quando foi subitamente segurado por Maisena. Achou que seria acalmado por ele, no entanto, da flor fixada em seu terno listrado e colorido, saiu forte jato de água, molhando todo o seu rosto.
Saiu sem olhar pra trás. E tapando os ouvidos para as risadas histéricas. Levava amassada nas mãos, seu projeto de lei. Foi direto para rodoviária. E depois para Brasília. Entrou sem ser convidado no palanque da Câmara. Discursou com o rosto vermelho até ser retirado pelos seguranças. Não sem antes ver os poucos deputados presentes rindo de sua iniciativa, para depois retomarem a votação do aumento de seus próprios subsídios. Desejou de toda sua alma que morressem de rir. Mas, não tinha jeito… Era tudo uma palhaçada mesmo…

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Tratado sobre Filas

                  Trata-se de senso comum a paradoxal afeição/repulsa do brasileiro por uma fila. Dizem alguns até que, outros, ao passar por um local qualquer, entram em filas pelo simples (des)gosto de estar em uma fila. A fila é o assunto predileto do final de um dia de serviço: “peguei um fila no banco”! A fila é a mãe da paciência. A fila é o chamado da incompetência. A Fila é a prova maior da miscigenação brasileira onde rostos e cores e temperamentos dos mais variados formatos trocam olhares tímidos até o silêncio ser quebrado. “Essa fila não anda, né”. Pronto. O início de tudo. Picadeiro para lamentações. Nascimento de casamentos e amizades. Lennon e McCartney se conheceram em um fila. Batman e Robin. Han Solo e Chubaca...

A fila é o prazer predileto do idoso...

- Essa fila não anda, né – é um senhor a minha frente que fala.
- É.
- Sabe que um dia eu fiquei seis horas em uma fila.
- Mentira!
- É verdade. Sabe, eu moro sozinho, sou viúvo, casei três vezes, meus filhos moram em Brasília, só saio de casa pra receber minha aposentadoria...
Alguns minutos depois.
- ... em 46 eu estava na Itália quando minha infantaria...
Muitos minutos depois.
- ... eu chutei na trave! Na trave!

                     Finalmente o senhor é o próximo a ser atendido. Agradeço a conversa. Ele devolve o meu lenço molhado pelas seis vezes em que chorou. Atônito vejo o velho se despedir da minha pessoa sem se dirijir ao caixa e buscar o fim da fila! Dois minutos após me busco a saída do banco a tempo de escutá-lo dizendo para a jovem que se encontra à sua frente: -“essa fila não anda, né. Sabe, um dia eu fiquei seis horas em uma fila”...

A fila é a arena da paquera...

- Essa fila não anda, né – ele é que puxa o papo.
- É verdade – responde ela sem maior interesse.
- Você tem muita coisa pra pagar?
- Não, só minha conta de telefone.
- Posso ver? É que tem alguns títulos que este banco não recebe.
- Uai, se é assim, por favor.
O rapaz passa a tomar nota de algo com uma caneta na palma de sua mão.
- Peraí, o que você está anotando?!
- Seu telefone...

                         Filas, filas... em todos os cantos da vida...

                        Na fila do banheiro tragédias desabam sobre a cabeça dos viventes! Primeiro, temos a épica situação dos tímidos (ou complexados), que não importa quantos mictórios retangulares estejam disponíveis, eles os refutam e esperam por cerca de quinze minutos o rapaz bêbado melhorar para utilizarem da discrição da cabine individual da privada. Fica ali, recluso e calado, e se contorcendo para aguentar a vontade. 

                         Filas, filas... em todos os cantos da vida... 

                 Toda fila tem aquele enxerido que não puxa conversa! Fica calado escutando o papo dos outros... e observando de canto de olho o que voce vai pagar... Ou aquele espertinho que tenta furar a fila! Sacrilégio!

                          Filas, filas... em todos os cantos da vida...

                     Na fila do self-service então... apenas um aceno de cabeça como cumprimento... e olhares censuradores quanto aquilo que voce põe no prato...

                          Filas, filas... em todos os cantos da vida...

                      E aquele caso verídico do guardinha que ficava o tempo todo arrumando a fila e, com isso, não percebeu o banco ser assaltado...

                    Não importa aonde, elas sempre irão existir. Enquanto ser humano, tenho tentado me acostumar a elas. Grandes e pequenas. Demoradas ou não... Sempre nos imbuirão daquela relatividade de tempo que nos remete diretamente ao –“Essa fila não anda, né”... bem como aquela sensação de que a fila ao lado, sempre anda mais rápido... Fui Murphy que disse isso? Basta-nos então tirar o melhor proveito delas enquanto vivos... ou mortos, porque disseram-me que tem fila pra entrar no céu!

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Efeito Concurseiro

            Noite de sábado. Em pé, porque sentado só os fracos, o concurseiro espera a chegada do ônibus, depois de quatro horas de uma prova simulada. Nas mãos uma guia de bolso de “controle de constitucionalidade alemão pós-garantista”. A leitura profunda é interrompida por um gatuno que espreitava nas sombras. Saltando diante de nossa personagem, falou em tons negros de raiva:
            - Perdeu, Playboy! Perdeu Playboy! Vou te furar com minha peixeira e levar toda a sua grana!
            A mão do Concurseiro, que não citaremos o nome por questões legais, levanta-se com rapidez pedindo que o algoz aguarde um instante. O Concurseiro parece estar finalizando um capítulo. O clima é tenso...
            - Pois não?
            - Pois não, mano???!!! POIS NÃO???!!! Tá doido, peixe? Tá me tirando? Sô muleque doido, rapá... tá brincando com sua vida!
            - Muleque doido? Sou concurseiro, porra! Vivo no limite da minha sanidade! No hospício que você vive eu sou o diretor!
            O raposo assaltante não entende muito, mas respeita a atitude da vítima.
            - Escuta, meliante, posso te dar uma dica?
            - Fala véi.... mas anda que tem mais gente na fila pra levá esporro... tenho que levar leite pra casa senão minha muié minha mata!
            - Quando estiver realizando seu fatos típicos...
            - Que???
            - Seus crimes....
            - Ah, tá....
            - Não diga que vai matar pra pegar o dinheiro.... Isso é latrocínio e tem pena de 30 anos de cadeia. Assalte apenas. Se matar alguém, não leve o dinheiro. Você será indiciado em roubo ou homicídio. As penas são menores.
            - Pô mano, valeu pela dica. Dá um abraço aqui... É que a gente não é estudado, sabe...
            O ex-assaltante-assassino, (agora só assaltante ou assassino), sai girando sua faca, pensando quão valioso é uma conversa e ensaiando sua nova abordagem, quando é interrompido pelo concurseiro que o chama.
            - Fala, Dotô...
            - São R$ 100,00 reais pela consulta jurídica.
            - Que isso, mano! Mas que assalto!.... Faz um menos, Dotô?
            - Oitenta e cinco pratas, sem choro. Tenho que comprar uns livros novos...
            Quem é o bandido, quem é o mocinho? Não importa. Foi feito justiça? Não importa. A vida os levará a ficar novamente frente a frente. O Concurseiro será o promotor; o gatuno será gatuno mesmo. Mas, enquanto isso, valeu a lição: afastem-se de quaisquer pessoas de óculos e livros jurídicos nas mãos. O saber e a tensão emocional.... dois velhos namorados.

domingo, 1 de abril de 2012

E.Q.M. (Experiência de Quase Morte)

                                         A morte, esta danada, convive lado a lado com a vida desde que o mundo foi criado por Deus. Aliás, Deus, se viu danado ao criar a vida, e desta forma, condenado o mundo a ser uma grande e superlotada prisão, quando chegaria o dia em que tantas pessoas vivas estariam subindo por cima uma das outras por não haver para mais para onde ir. Então, ele criou a morte (com seu temido capuz preto e afiada foice – dizem alguns que buscou inspiração no uniforme do BPE). Importante ressaltar este dado, porque, para muitos, a morte foi obra do diabo. Mentira. Ele só se aproveita dela. Mas, deixemos de lado estas questões divinas e caiamos do sétimo círculo do céu para vivenciarmos, (com o perdão do trocadilho), as estórias que circundam o tema e que o conto nos propõe.
                                        Entre as idas e vindas do elevador celestial, existe uma zona cinzenta, tão mitológica quanto sedutora para a mente humana, e que mantém almas presas nem lá, nem cá, dando origem ao fenômeno denominado “EQM”, sigla de “Experiência de Quase Morte”. Esta condição de se viver quase morto pode ser observada comumente nas pessoas que se encontram em estado vegetativo, como o coma, por exemplo. Vejamos o caso de José. “Caso” não porque pode ser tomado como balela. Vejamos a estória de José.
                                      José parece ter sido predestinado a passar por uma EQM já pelo próprio nome recebido ainda na maternidade. José Jesus de Deus, ou seja, levara a graça do Pai, do Filho e do próprio Espírito Santo. Pois bem; pai de dois filhos, viúvo casado pela segunda vez, aposentado, peladinha aos sábados com cervejada depois... uma pessoa tão comum que passaria despercebida pela rua, sem quaisquer pretensões de ser personagem de um conto qualquer ou protagonista de experiências espirituais.
                                         Em dia de domingo, Seu José, como oficial reformado da esquadrilha da fumaça, desfilava em garboso cavalo durante as comemorações de 7 de setembro, quando um militante da causa contra as temíveis sacolinhas plásticas, assustando o reluzente corcel que conduzia e fazendo com que o arremessa-se ao solo. A mistura do sangue e da purpurina foi a última visão que precedeu ao silêncio da escuridão que sobre ele se abateu por muitos meses...
                                            Após cento e oitenta dias de muita reza e promessa, sua esposa, agoniada com o estado de coma do esposo, procura a tenda do Pai Francisco na busca de acalentar seu calvário. Tomou conhecimento do médium por um movimento mecânico que nada teve de espiritual: pegando um folhetinho entre os milhares nas mãos de um jovem sorridente sob o sol quente da tarde de uma terça-feira. Nele, lia-se: “Pai Francisco – médium, bicheiro e professor de balé”. Resistente, pois descrente destas coisas do céu, acabou vencida pela esperança e pela curiosidade.
                                      A casa, muito humilde, parecia-lhe compatível com o lar de um homem santo. Fora recebida por dois adolescentes, com camisetas contendo o slogan “I see dead people”, os quais, veio saber depois, eram filhos do homem. Adentrou a tempo de ver Pai Francisco trocar o colãn de ballet por uma bata branca e muitos colares. Estendeu-lhe a mão que ficou suspensa no ar, já que o curandeiro, cheio de ritual, limitou-se ao cumprimento padrão dos monges budistas, abaixando a cabeça com as mãos junto ao corpo.
                                         - O senhor é kardecista?
                                         - Marxista ortodoxo.
                                         - Cobra pelo serviço?
                                - Os santos agradecem... mas desde que seja de “coração aberto” – disse querendo demonstrar simpatia.
                                     - E estamos falando de...?
                                   - Nossos preços são tabelados: Prece: R$ 50,00; Terço: R$ 100,00; Passagem pra encosto: R$ 200,00 e Falar com o morto: R$ 300,00.
                                      - ..... ele está em coma.
                               - hum.... mais complicado. A comunicação anda difícil pela interferência das rádios piratas...
                                     - R$ 350,00.
                                     - Fechado! Mais uma alcatra e uma coca-cola.
                                     - Pai, temos muita coca na geladeira – (um dos meninos é quem diz).
                                     - Então fanta.... oferenda para os santos, se é que a sra. me entende. Nome do indivíduo?
                                      - José Jesus de Deus.
                                   Olhos fechados. Espasmos eram observados no corpo do médium. Um gato preto miou. O vento soprou de forma diferente...
                               - José Jesus de Deus.... 1,2,3... vaca salomé eu sei o que é.... câmbio... .... hum.... vai ser difícil, talvez se..... Olavinho! Meu cachimbo por favor!
                                     Fogo na cumbuca.
                                   - Mas, Pai Francisco, isto é maconha!
                                   - É pra facilitar a “viagem”.
                                  - José Jesus de Deus... 1,2,3... vaca salomé, eu sei o que é... câmbio....   .....  – silêncio - Ludmila, é você?
                                  -  José??? Eu não posso acreditar... me dê uma comprovação de que é realmente você!
                                      - o Cruzeiro ultrapassou o São Paulo no campeonato?
                                      - José!!!! É você, meu amor!
                                      - Onde estou? O que está acontencendo?
                                      - Você está no hospital e em coma... e neste exato momento está incorporado no médium Pai Francisco... vem cá, me dê um abraço, um beijo...
                                          - ê ê ê ê ê ê ê... tá doida, mulher! Vai ficar de chamego com outro homem, é? A gente não pode nem morrer por uns dias...
                                   - Tá bem, tá bem....  mas, quando voce volta? Nossos filhos estão com saudades. Viu alguém conhecido? Onde tem estado?
                                       - Só vi minha primeira mulher....
                                       - o quê? Salafrário! Bandido! E eu aqui chorando...
                                    Tapas, sopapos e solavancos... Olhos fechados. Espasmos eram observados no corpo do médium. Um gato preto miou. O vento soprou de forma diferente...
                                       -  ei, ei... pare, sou eu, Pai Francisco!
                                       - Desculpe e muito obrigado pela consulta...
                                       - Mas a sra. já vai? Não quer fazer uma “fézinha” no jacaré não?

                              O sono vegetativo de José durou mais dois meses. As pessoas ainda hoje estranham a recepção demasiada seca da esposa para o moribundo que voltava à condição de vivo. José não se lembra de quase nada. Nem mesmo da conversa com a mulher na tenda do médium. E ainda hoje, quando perguntado sobre sua EQM, relata somente o que parece ter sido os minutos anteriores ao seu despertar:

                                    - Quando me vi, estava em um túnel de luz... sentia estar flutuando, envolto por uma névoa rala e alva, ao som de uma música celestial... então, ao longe, uma figura se fez presente... minha falecida sogra vestida com uma roupa branca e com muita luz sobre sua cabeça, acenava para mim...
                                       - Então???
                                   - Eu acordei logo após sair correndo na direção oposta a ela... a cascavel da minha sogra me chamando??? Coisa boa que não era!!!

                                    Se existem mais coisas entre o céu e a terra, esta é uma delas. E por sobre elas, uma força maior parece rir de nossa limitada compreensão, decidindo por parâmetros que desconhecemos, como se rege a vida e morte, por estes caminhos de meu Deus..
                       
                                   E para os “Tomés”, céticos ou mesmo os curiosos, deixo aqui o endereço de Pai Francisco, na rua...

domingo, 25 de março de 2012

O Narcisista

            Só tinha um problema. Era narcisista.

            Não se dava bem com as mulheres... achava que ainda não tinha achado encontrado uma a sua altura:
-         Você tem fogo? – é ela que pergunta.
-         É o que dizem...
-         Como?
-         Nada, nada. Meu nome é Augusto Dumont Valentim e Bragança III.
-         Fernanda, prazer em te conhecer.
-         Eu sei.
-         Como?
-         Nada, nada. Você tem olhos tão belos quanto os meus...

O trabalho era uma tragédia... com certeza inveja e olho gordo dos colegas – pensava ele:
-         Augusto, você terminou o acabamento daquela propaganda?
-         Óbvio. E ainda melhorei.
-         ... - (silêncio e uma expressão chocada!).
-         Bem, eu achei melhor trocar os cachorros por leões para dar um certo ar de realeza. Tirei a areia e pus neve para ficar mais chique. E aquele modelo tinha o canino esquerdo meio fora do centro, por isso coloquei esta foto minha... mas não vou cobrar nada por isso.

Dizem que começou já na infância:
-         Oi. Vamos dividir o lanche? Eu tenho banana, bolacha e suco de groselha.
-         Amanteigado integral, Yakult e chocolate holandês.
-         Hum... então vamos jogar bola!
-         Não, obrigado. Vai despentear o meu cabelo e o nível do pessoal aqui é muito baixo.
-         Você é muito chato, vou chamar meu pai!
-         Pode chamar que o meu é cem vezes mais forte que o seu!

Contam que para tentar corrigir este pequeno desvio de personalidade fez terapia. Logo desistiu... achava o psicólogo muito despreparado. Tornou-se então ermitão e mais tarde converteu-se em franciscano. É verdade que o único da história que usava celular e possuía um espelho de dois metros no quarto. Diziam que havia melhorado bastante. Mas, ora ou outra recebia um puxão de orelha:
-         Augusto, olha a humildade!
-         Eu sei padre, eu sei... acho que estou me tornando a pessoa mais humilde do mundo!


segunda-feira, 19 de março de 2012

No Jardim de Infância

- Você trouxe o produto?
- Qual é Peixe, eu não vacilo não.
- Só esta trouxinha? ? Quantos gramas tem isto aqui? ?
- Vai por mim Truta, mistura que eu garanto o resultado.
- Não sei não... este pó está muito esfarelado...
- É do bom, Mano. È do bom.
- Olha que eu conheço o Robertão... ele pesa vinte quilos e...
- Êh... sem ameaça Traíra! Tu nem provou o bagulho! Vai ficar com a boca doce!
- É melhor mesmo! Passa pra cá...
- Pó... hoje em dia ninguém reconhece o trabalho da gente... Meus joelhos estão doendo de vir até aqui!
- E eu tenho culpa se você ainda não anda? ?!!

...

- Mano... que isso... maior viagem... cara... esse é do bom!
- Eu te falei, Peixe, eu te falei. Essa nutricionista não sabe o que é bom nessa vida!
- Mas diga aí, onde tu arrumou este achocolatado em pó?
- Contato é tudo na vida, Brou. E você já sabe, se perguntarem...
- “Não te conheço pessoalmente... você deixa o produto debaixo do ursinho de pelúcia ...”
- Isso aí Mano, isso aí... Putz! Sujou! Lá vem a Tia Zuleide! Esconde a mamadeira aí!

quarta-feira, 14 de março de 2012

Não é você, sou eu!


                        Era sempre assim. De tempos em tempos arrumava uma namorada. Era seletivo. Não gostava das vazias, ainda que bonitas. Preferia as românticas, sonhadoras, visionárias e as que cozinhavam bem. Só que aí acontecia. Aquele sentimento estranho por natureza. Enquanto ainda pisavam em flores, quando os defeitos ainda encontravam-se imperceptíveis aos olhos da paixão, ele danava em terminar os namoros.
                        Não haviam justificativas para serem dadas. Vez ou outra as inventava, boas ou ruins. Vez ou outra recorria a chavões. “Você não merece”. “Sou muito jovem para envolver-me em um relacionamento tão sério”. “Acho que sou gay”. “Não é você, sou eu”. Essas coisas... E não importa o que escutavam, o príncipe era destronado. Convertido em algo asqueroso e repudiável. As donzelas refugiavam-se em suas altas torres e choravam na esperança de que algum novo príncipe encantado fosse lhes tirar daquele pesadelo, (muito embora receosas de uma nova desilusão – essas mulheres nunca aprendem, né).
O que não pode ser compreendido nesta curta estória, (mas, com conteúdo dramático considerável), é que ele, vivendo um paradoxo sem limites, sofria até mais que elas. Buscava o alento do quarto de dormir e, por no mínimo três dias e noites, ficava a escutar “Vento no Litoral” e a consumir dezoito caixas de lenço de papel. Matava serviço. E sofria a perda da mulher amada. Não queria conversar com as pessoas. E sofria a perda da mulher amada. Cozinhava para um. E sofria a perda da mulher amada. Lia Drummond. E sofria a perda da mulher amada. Jogava pingue-pongue. E sofria a perda da mulher amada... Amada???
Como assim? Não era sempre ele a terminar seus namoros? Pior. Quando tudo ainda eram risos e o amor nada monótono. Quando ela pensava em apresentá-lo aos pais. Quando aquela música no rádio parecer fazer todo sentido. Quando se perde metade do dia de trabalho pensando no ser amado. Quando se gasta o triplo do valor daqueles ursinhos de parque de diversões só para ganhá-los atirando com a espingarda de pressão. Por quê? Por quê?
Ele não sabia. E depois de vinte e oito namoradas em três anos, resolveu buscar ajuda. Era sempre a mesma estória. A iniciativa do rompimento, a dor que só os poetas sabem explicar e os por quês sem resposta. Tentou o espiritismo, zen-budismo, capitalismo e darwinismo. Quiromancia.  Farmacologia, zoologia, pirofagia. Já cansado de buscar explicações, acreditando ser sua vida destinada a infligir dor e sofrer em razão dela, foi num Congresso Internacional de Masoquismo Tântrico, ao ouvir palestra de um lama discípulo de Freud, que pode raciocinar sua condição peculiar: Não havia uma razão divina ou reencarnacionista em seu comportamento... Era viciado em dor de cotovelo.

domingo, 4 de março de 2012

Nossas Velhas Tendências (ou O Crime (Comum) Não Compensa)

Era, apesar de tudo, uma alma boa. Duro, mas boa pessoa. Ladrão, mas caridoso. Isso de certa forma o confortava. Mas só um pouco. Também colocava a culpa no “Sistema”, no Fofão – que acreditava ter pervertido sua juventude - e na “Teoria do Caos”. Gatuno, mas pensador. Isso de certa forma o confortava. Mas só um pouco.

Corria avidamente pela rua. Cobriu cem metros em quinze segundos. Uma grande marca. Não havia quem o perseguisse, mas o instinto assim o pedia. Acabara de assaltar uma barraquinha de cachorro-quente. O produto do roubo se resumia a sete reais, duas salsichas e um vidrinho de mostarda. A ânsia do lugar seguro fê-lo tropeçar, retirando aquilo que chamamos de “tampão do dedão”. Doeu.

Procurou uma farmácia para comprar um band-aid. Na porta uma retirante nordestina pedia ajuda para as crias esfomeadas. Tentou ser insensível. Em vão. Aqueles cabeçudinhos com olhos esperançosos pareciam famintos. Resistiu até que um deles o chamou de “Tio”. Deu os sete reais e comprou o band-aid fiado.

Atravessou a ruela escura para chegar até em casa. Foi surpreendido por um pitt bull não muito amistoso. Eram ele e ele. O chamou de Tótó, ao que parece não ter gostado muito. Tentou Tobby, Rex, Hulk, mas quando citou Snoopy, foi atacado. Para se ver livre do cão do inferno arremessou uma salsinha para o ar, a qual foi abocanhada com precisão. Acreditando estar quite com o canino, retomou sua caminhada. Foi novamente barrado. Havia outra salsinha, que entregou relutante, dizem alguns que até rosnando para o animal. Veio saber um dia que o nome dela, era Carícia.

Foi para casa inconformado. Sentado no chão de terra batida, maldisse o ministro da Fazenda. Com um pão francês já meio endurecido, comeu o vasilhame de mostarda... vencida. Passou mal dois dias. Diarréia. Foi para o hospital onde ali confessou o delito por acreditar estar sendo punido por uma força divina. Balbuciava em meio às cólicas intestinais:

-          É, o crime não compensa.

Na prisão entrou para uma igreja ortodoxa e teve uma “visão”. Ficou desacordado por dois dias e cego por mais três. Encontrou a verdade absoluta. Fundou um grupo de rap chamado “Pavilhão 2.564”. Em evidente plágio, lançou um cd com título “O Milagre do Ladrão” e música de trabalho, “O Crime Não Compensa”. Ficou famoso. Passou naquele programa neste último domingo. Saiu da prisão e se tornou uma referencia religiosa e política. Tornou-se líder comunitário e ainda hoje faz discursos rebuscados contra o Sistema, citando para tanto, a Teoria do Caos. Em cada pronunciamento, o chavão quase que solene: “o crime não compensa”.

Lançou-se como deputado federal. Obteve expressiva votação. Mas ao que parece tem mudado um pouco sua ideologia. Hoje, convive com a aristocracia-branca-rica-dominante, elogia a política monetária e, seu último “milagre”, consiste no sumiço de uma verba para construção de um conjunto habitacional. Contam nos bastidores que, refletindo sobre a trajetória de sua vida, é fácil surpreende-lo dizendo:

- É, o crime “comum” não compensa... mas, os de colarinho branco...

Ah... nossas velhas tendências...

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

FILOSOFADAS ETÍLICAS

           Estava preste a cometer suicídio. Do alto da ponte chorava copiosamente nossa personagem. Fazia um discurso solitário para si mesmo. A garrafa de vodka barata era testemunha de tudo. O filme da vida passava em preto e branco. Nada mais fazia sentido. Nem as rosquinhas açucaradas da vovó. Nem as peladas matutinas. Nem a Claudete. Aliás, muito menos a Claudete.
           
Estava com seus 36 anos. Bem dormidos. Não apreciava o trabalho, estudo ou qualquer coisa do gênero. Tentou uma carreira alternativa: montou a banda “Os Macacos Orgânicos de Cingapura”, banda esta sem muita expressão no circuito municipal. Já no final da vida resumia-se a comer, dormir e assistir Thundercats. A namorada Claudete o deixou pelo entregador de jornal. O pai o expulsou de casa quando resolveu ser metrossexual. A mãe ainda espera o retorno do filho pródigo.
           
Retomando nossa narrativa, seriam aqueles os últimos momentos de Normando, se não fosse pela intervenção de um bêbado que ali passava. Um psicólogo bêbado. Bebendo para esquecer os problemas dos outros. Pediu a Vodka. Compartilharam como irmãos. Conversaram sobre Freud, Sartre, Kiegaard, mas só chorou quando o Dalai Lama foi citado. Fez terapia para esquecer Claudete. Regressão até a infância para expulsar o medo de baratas. Renasceu para vida...

-          Doutor, estou me sentindo MA-RA-VI-LHO-SO.
-          Filosofadas, filosofadas...
-          O senhor é uma “star”.
-          Filosofadas, filosofadas...
-          Não posso viver sem você!
-          Manera aí, é só a boa ação de uma filosofada etílica.
-          Me dá um beijo?

Então o doutor o empurrou da ponte.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Descanse em paz, Querida Sogra!

                  Não porque estava levemente embriagado. Ou com a camisa da seleção e chinelos. Mas a contrariedade da família parecia ser direcionada ao sorriso que escapulia a todo o momento. Sua insistência acabou por vencer os votos contra sua eleição à “Representante da Dor da Família”. Os presentes ainda se perguntavam se, genro, pode ser considerado parente ou coisa parecida. Mais coisa parecida que qualquer outra.

                Antes do pronunciamento ficou ao lado do caixão o tempo todo. Na mão um charuto cubano e uma bengala. Diziam alguns que era “para possibilidade dela querer levantar”. Fazia questão de receber os pêsames de todos os solidários. Aquilo de certa forma o consolava.

                - Meus sentimentos de reconforto.
                - É, os meus são também.
                - Como?
                - Nada, nada.
                - Que semblante de “descanso”, não é mesmo?
                - É que dormi bem esta noite.
                - Eu estou falando da Dona Queta.
                - Ah, sim...

                De microfone em punhos foi autorizado pelo Padre a iniciar. Forçou um choro sentido. Sem lágrimas, quase verdadeiro...

                - Só uma palavra pode nos ajudar neste instante... Resignação! Eu estou bastante resignado! O Serjão, meu concunhado, também comunga deste entendimento!
                - Papai! – uma voz estridente da platéia.
                - Eu sei, querida... reconfortemo-nos na idéia que a sua avó descansou... todos nós descansamos!
                - Nélio! – outra voz estridente.
                - Eu sei, eu sei... neste momento temos que lembrar de seu fisionomia simpática... se bem que nunca a vi tão bem quanto agora! Lembrar do carisma de Dona Queta... e das rimas sacanas que a gente fazia com seu nome!
                - Papai!
                - Nélio! – vocês sabem quem...

                O padre tomou-lhe o microfone das mãos. Um coroinha ria sem pudores. Deram por encerrado o pronunciamento. Apressaram o enterro. Com sua mão direita liderava a solenidade do carregamento do caixão. Com a esquerda segurava a bengala. Ele mesmo fechou com força extremada todas as presilhas da urna. Chamou o funcionário do cemitério num canto e agradou-o com vinte mangos para que aumentasse o tamanho da cova. Querendo redimir-se da postura censurável na igreja, despediu-se convincentemente comovido:

                - A família agradece todas as demonstrações de carinho prestadas por esta perda inestimável. De mãos dadas, enxugaremos nossas lágrimas e recordaremos nossa insubstituível matriarca! Adeus, adeus...
               
                A forma sóbria acabou por soar cortês, agradando a filha, a esposa e restante dos familiares. Alguém suspirou. Duas pessoas na verdade. Outra começou a chorar. O entusiasmo do resultado do discurso abriu espaço para maiores considerações...
       
                - Que a luz divina recaia sobre sua alma...

                Alguns já vinham lhe cumprimentar. O episódio canônico já havia sido esquecido.

                - Que os anjos a recebam com cânticos celestiais...

                Aplausos e barulhos de narizes sendo assuados eram ouvidos enquanto o caixão descia. Foi o último a jogar uma flor sobre o caixão. E virando-se, finalizou com emoção:

                - Descanse em paz, querida sogra... Gostaria ainda de convidá-los para um almoço domingo próximo lá em casa. Cerveja gelada, picanha maturada e o grupo de pagode do Tuta! Amém!

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

CONJECTURAS MACHISTAS PRIMITIVAS


Já no princípio, o começo de tudo: Eva nasceu da costela de Adão. Nada contra Adão ficar desfalcado por toda eternidade de uma costela. Existem pessoas que vivem sem pernas, alguns sem braços e muitos, muitos mesmo, sem cabeça. Mas, retornemos à nossas conjecturas.  Deste incidente cósmico, podemos tirar duas conclusões: Deus é Homem e Machista. Posso até arriscar que usava camisa com os botões abertos e com os fartos pelos do peito à mostra enquanto modelava o barro na criação de Adão. Deus, narcisista como o é, criou o homem à sua imagem e semelhança. Já a mulher, representava o inatingível, a perfeição, algo realmente superior e desconhecido... mas, o Todo Poderoso, orgulhoso como o é, não poderia admitir isso (pelo menos publicamente), fazendo-a surgir da barriguinha de Adão. Machismos, machismos...
O casamento foi no quinto jardim do paraíso. Muito simples é verdade, somente familiares e poucos amigos. Presentes no cartório celestial estavam o pai do noivo (Deus), os anjos Gabriel e Lúcifer, Noé e duas diabinhas com vestidos bem decotados. A festa transcorreu com alguns percalços, mas nada que tirasse o brilhantismo da mesma. Gabriel, que havia sido criado antes do ponche, se embebedou. Lúcifer, encantado com as diabinhas, deixou o paraíso para levá-las em casa e nunca mais retornou. Noé discursou por uma hora e meia, deixando à disposição dos noivos, seu barquinho para a lua-de-mel. Adão acordou tarde e atrasou mais que a noiva, já que Deus, farrista como o é, promoveu uma grande despedida de solteiro para o filho, com direito a piscina de gelatina e muitas, muitas mulheres nuas. Machismos, machismos...
Adão, se sentindo o tal, deu início ao que chamamos vida conjugal com um ligeiro ar de superioridade. Fazia questão de assistir a fita da copa de 70 bem na hora da novela, reclamava da comida e freqüentemente chegava embriagado em casa, nunca aceitando qualquer comentário queixoso de Eva. Mas esta situação não demoraria a ruir. Deus, mulherengo como o é, escorregou (alguns dizem que propositalmente) em sua criação mais perfeita: Dotou-lhe de inteligência, enquanto, nós homens, fomos criados com “incríveis” habilidades como beber cerveja e fazer baliza. Desta forma, não demoraria muito para que Eva, cansada desta vida primitivamente machista, buscasse novos ares.
E assim foi. Em um domingo quente, Adão retorna para casa após a pelada matutina, não encontrando Eva e nem mesmo o almoço pronto. Revoltado, e disposto a exigir seus direitos de marido, Adão sai ao encontro da “amada”. Para sua surpresa, debaixo de frondosa árvore, encontrou Eva a conversar com a Serpente.
-          Adão, não é nada disto que você está pensando...
E ao contrário do que o conto pode sugerir, Adão, não conseguiu esboçar qualquer reação máscula e dominadora. Deus, sentimental como é, expunha pela primeira vez a fragilidade masculina, quebrando a redoma machista do então inabalável ser Homem. Adão, agora impotente, mas ainda relutante em chorar, conseguiu apenas balbuciar umas poucas palavras:
-          Amor, vamos para casa...
Mas Eva, sentindo o momento de fraquejo do companheiro e utilizando sua imensa persipcácia não pensou duas vezes:
-          Hoje vou chegar tarde, não me espere, Ok?
Depois do incidente Adão esfacelou-se. Arrumava a cama, cozinhava aos domingos e trocava as fraldas das crianças. Dizem que seu último ato machista foi, no aniversário de quinze anos dos filhos, levar Caim e Abel ao prostíbulo mais próximo para a tradicional iniciação sexual machista. Afinal velhas tendências são difíceis de se perder. E Deus, tradicionalista como o é, ainda tenta aconselhar Adão sobre a postura do homem na vida de casado. O filho ouve o Pai calado, como a que concordar com as conjecturas machistas primitivas do Criador. Mas a cada sermão, podemos lá no fundo, escutar entre pensamentos indignados, Adão repetir para si mesmo: - “é porque o Senhor não tem mulher”!