A morte, esta danada, convive lado a lado com a vida desde que o mundo foi criado por Deus. Aliás, Deus, se viu danado ao criar a vida, e desta forma, condenado o mundo a ser uma grande e superlotada prisão, quando chegaria o dia em que tantas pessoas vivas estariam subindo por cima uma das outras por não haver para mais para onde ir. Então, ele criou a morte (com seu temido capuz preto e afiada foice – dizem alguns que buscou inspiração no uniforme do BPE). Importante ressaltar este dado, porque, para muitos, a morte foi obra do diabo. Mentira. Ele só se aproveita dela. Mas, deixemos de lado estas questões divinas e caiamos do sétimo círculo do céu para vivenciarmos, (com o perdão do trocadilho), as estórias que circundam o tema e que o conto nos propõe.
Entre as idas e vindas do elevador celestial, existe uma zona cinzenta, tão mitológica quanto sedutora para a mente humana, e que mantém almas presas nem lá, nem cá, dando origem ao fenômeno denominado “EQM”, sigla de “Experiência de Quase Morte”. Esta condição de se viver quase morto pode ser observada comumente nas pessoas que se encontram em estado vegetativo, como o coma, por exemplo. Vejamos o caso de José. “Caso” não porque pode ser tomado como balela. Vejamos a estória de José.
José parece ter sido predestinado a passar por uma EQM já pelo próprio nome recebido ainda na maternidade. José Jesus de Deus, ou seja, levara a graça do Pai, do Filho e do próprio Espírito Santo. Pois bem; pai de dois filhos, viúvo casado pela segunda vez, aposentado, peladinha aos sábados com cervejada depois... uma pessoa tão comum que passaria despercebida pela rua, sem quaisquer pretensões de ser personagem de um conto qualquer ou protagonista de experiências espirituais.
Em dia de domingo, Seu José, como oficial reformado da esquadrilha da fumaça, desfilava em garboso cavalo durante as comemorações de 7 de setembro, quando um militante da causa contra as temíveis sacolinhas plásticas, assustando o reluzente corcel que conduzia e fazendo com que o arremessa-se ao solo. A mistura do sangue e da purpurina foi a última visão que precedeu ao silêncio da escuridão que sobre ele se abateu por muitos meses...
Após cento e oitenta dias de muita reza e promessa, sua esposa, agoniada com o estado de coma do esposo, procura a tenda do Pai Francisco na busca de acalentar seu calvário. Tomou conhecimento do médium por um movimento mecânico que nada teve de espiritual: pegando um folhetinho entre os milhares nas mãos de um jovem sorridente sob o sol quente da tarde de uma terça-feira. Nele, lia-se: “Pai Francisco – médium, bicheiro e professor de balé”. Resistente, pois descrente destas coisas do céu, acabou vencida pela esperança e pela curiosidade.
A casa, muito humilde, parecia-lhe compatível com o lar de um homem santo. Fora recebida por dois adolescentes, com camisetas contendo o slogan “I see dead people”, os quais, veio saber depois, eram filhos do homem. Adentrou a tempo de ver Pai Francisco trocar o colãn de ballet por uma bata branca e muitos colares. Estendeu-lhe a mão que ficou suspensa no ar, já que o curandeiro, cheio de ritual, limitou-se ao cumprimento padrão dos monges budistas, abaixando a cabeça com as mãos junto ao corpo.
- O senhor é kardecista?
- Marxista ortodoxo.
- Cobra pelo serviço?
- Os santos agradecem... mas desde que seja de “coração aberto” – disse querendo demonstrar simpatia.
- E estamos falando de...?
- Nossos preços são tabelados: Prece: R$ 50,00; Terço: R$ 100,00; Passagem pra encosto: R$ 200,00 e Falar com o morto: R$ 300,00.
- ..... ele está em coma.
- hum.... mais complicado. A comunicação anda difícil pela interferência das rádios piratas...
- R$ 350,00.
- Fechado! Mais uma alcatra e uma coca-cola.
- Pai, temos muita coca na geladeira – (um dos meninos é quem diz).
- Então fanta.... oferenda para os santos, se é que a sra. me entende. Nome do indivíduo?
- José Jesus de Deus.
Olhos fechados. Espasmos eram observados no corpo do médium. Um gato preto miou. O vento soprou de forma diferente...
- José Jesus de Deus.... 1,2,3... vaca salomé eu sei o que é.... câmbio... .... hum.... vai ser difícil, talvez se..... Olavinho! Meu cachimbo por favor!
Fogo na cumbuca.
- Mas, Pai Francisco, isto é maconha!
- É pra facilitar a “viagem”.
- José Jesus de Deus... 1,2,3... vaca salomé, eu sei o que é... câmbio.... ..... – silêncio - Ludmila, é você?
- José??? Eu não posso acreditar... me dê uma comprovação de que é realmente você!
- o Cruzeiro ultrapassou o São Paulo no campeonato?
- José!!!! É você, meu amor!
- Onde estou? O que está acontencendo?
- Você está no hospital e em coma... e neste exato momento está incorporado no médium Pai Francisco... vem cá, me dê um abraço, um beijo...
- ê ê ê ê ê ê ê... tá doida, mulher! Vai ficar de chamego com outro homem, é? A gente não pode nem morrer por uns dias...
- Tá bem, tá bem.... mas, quando voce volta? Nossos filhos estão com saudades. Viu alguém conhecido? Onde tem estado?
- Só vi minha primeira mulher....
- o quê? Salafrário! Bandido! E eu aqui chorando...
Tapas, sopapos e solavancos... Olhos fechados. Espasmos eram observados no corpo do médium. Um gato preto miou. O vento soprou de forma diferente...
- ei, ei... pare, sou eu, Pai Francisco!
- Desculpe e muito obrigado pela consulta...
- Mas a sra. já vai? Não quer fazer uma “fézinha” no jacaré não?
O sono vegetativo de José durou mais dois meses. As pessoas ainda hoje estranham a recepção demasiada seca da esposa para o moribundo que voltava à condição de vivo. José não se lembra de quase nada. Nem mesmo da conversa com a mulher na tenda do médium. E ainda hoje, quando perguntado sobre sua EQM, relata somente o que parece ter sido os minutos anteriores ao seu despertar:
- Quando me vi, estava em um túnel de luz... sentia estar flutuando, envolto por uma névoa rala e alva, ao som de uma música celestial... então, ao longe, uma figura se fez presente... minha falecida sogra vestida com uma roupa branca e com muita luz sobre sua cabeça, acenava para mim...
- Então???
- Eu acordei logo após sair correndo na direção oposta a ela... a cascavel da minha sogra me chamando??? Coisa boa que não era!!!
Se existem mais coisas entre o céu e a terra, esta é uma delas. E por sobre elas, uma força maior parece rir de nossa limitada compreensão, decidindo por parâmetros que desconhecemos, como se rege a vida e morte, por estes caminhos de meu Deus..
E para os “Tomés”, céticos ou mesmo os curiosos, deixo aqui o endereço de Pai Francisco, na rua...